Pessoas antes de papéis. Venho repetindo esta frase desde sempre. É uma versão especializada de “Escolhas e Consequências”, uma série antiga que nunca sai do catálogo de streaming Vidaflix. Muita gente não assiste, parece muito complexo.
Pessoas antes de papéis. Na sua vida baunilha, você escolhe alguém pela profissão? “Hmm, vou sair com um médico, ou arquiteto, ou CEO de uma startup?” “Olha estou em busca de uma comissária de bordo, ou melhor uma advogada, ou uma diretora de marketing?” Tirando algum fetiche que me seja desconhecido – como “medicofilia” ou “advogadofilia”, eu acredito que se busque conhecer um pouco a pessoa independente de sua profissão.
Pessoas antes de papéis. Na sua vida baunilha você busca celebridades, famosos, ou modelos, ou digital influencers? Excetuando o fato de você ser um stalker, ou deseje um(a) príncipe/princesa encantado(a), acredito que você busque pessoas mais acessíveis, com quem possa estabelecer um mínimo diálogo.
Pessoas antes de papéis. Se tudo que te interessa é a aparência, talvez um cuidado maior nas suas escolhas fora do mundo baunilha seja adequada.
E então, após repetições e repetições, você percebe que algo se modifica, que há pequenas luzes se multiplicando. Timidamente, mas talvez, quem sabe, justifique o cansaço das repetições.
O problema é que a quantidade avassaladora de gente mau caráter, mal-amada, vigaristas, abusadores(as) – a quantidade é imensamente menor, mas elas existem – tornam todos os cuidados e precauções que são repetidas incessantemente muito necessários, vitais, eu diria.
Então, às(aos) cautelosas(os), uma série de questionamentos importantes começa a ocorrer. Já não vale o título, o tempo de BDSM, a quantidade de conquistas, a associação a nomes famosos seja por qual razão.
Começam a valer questões como o que realmente essa pessoa fez, quais são suas preferências fora BDSM, quais os seus gostos, no que trabalha, se gosta de animais, qual seu livro favorito…

Questões que falem da pessoa. Se está em um relacionamento, se o(a) parceira(o) é ciente, seria possível falar com ela, neste caso? Se não, como vai manter um relacionamento às escondidas, qual seria a disponibilidade?
‘Ah, mas a privacidade….” Eu sou uma pessoa muito reservada e discreta. Eu amo minha privacidade. Mas eu não sou um personagem. Se vou me envolver com alguém, se vou ser um play partner ocasional ou estabelecer um relacionamento duradouro, minha pessoa estará envolvida. Eu tenho um papel, escolhido através de minhas preferências, que será de conhecimento da outra pessoa, mas além disso, eu posso revelar diversas coisas da minha vida sem renunciar à minha privacidade.
Porque não existe Marcus Silver sem o Marcus (é esse é o meu nome, nossa que criativo). Então, seja o relacionamento ocasional ou não, serei eu com minhas atitudes, pensamentos e valores que estará lá, assim com a parte de mim que é Silver. Não existe um sem o outro.
Nestes dias cinzentos, onde se encontrar de forma segura no “mundo real” (não, não é uma lenda urbana, a vida não começou no IG do zuquinho das candongas, acreditem), nos falta a percepção sensorial que vem com o olhar, com o movimento corporal, com um “jeito” que é inerente àquela pessoa. Isso faz falta demais.
Aí virão os defensores da tecnologia acima de tudo “Ah, mas você pode abrir um chat de vídeo”. Eu responderia, baseado na experiência de encontros no tal mundo real, que é bem diferente. O que você percebe numa câmera perderá em detalhes e precisão ao que você percebe ao vivo.

Você está protegido ou está preso?
Encontre a pessoa sem ser em uma sessão BDSM. Tome um café, sorvete, lanche, num lugar público (que respeite os protocolos de segurança). O ao vivo é fundamental.
E eu posso ver que, aos poucos, graças a coragem de poucas e ao apoio de muitos mais do que eu esperaria, as coisas estão começando a mudar. Ou talvez, voltar a um grau mais perto do que eu considero sanidade, sei lá.
Eu estou muito feliz com essa mudança de perspectiva. Mas ela traz embutida uma consequência inevitável, mas necessária. Nós (incluo aqui todos os que tem uma visão semelhante à que aqui apresento) nos tornamos alvo do mesmo escrutínio que defendemos. Seremos sim avaliados, questionados, examinados. E devemos apoiar isso sempre. É o melhor sinal de que o que defendemos está transformando e tornando o meio mais seguro e menos tóxico.
Mas não posso deixar de lembrar da sensação de passar em qualquer rua e ver que casas e prédios são cercados por grades, concertinas, cercas eletrificadas e pensar que estamos presos “para nossa segurança”. E me lembro de um verso da música da Legião Urbana que deu título a esse texto:
“Ninguém vê onde chegamos
Os assassinos estão livres, nós não estamos” – Renato Russo
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